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segunda-feira, 26 de maio de 2008

Violência Doméstica

Artigo retirado da Visãoline - Cartas na Mesa - Áurea Sampaio, Segunda-feira, 26 de Maio de 2008


As mulheres deviam boicotar Marinho Pinto. Que nenhuma, em caso algum, recorra aos seus serviços quando ele regressar à advocacia

O actual bastonário da Ordem dos Advogados (OA) vislumbra um «feminismo impertinente» na lei que considera um crime público a violência doméstica. Acha mesmo que há «um certo fundamentalismo» nessa lei, pois a vítima «não quer justiça, quer vingança». Marinho Pinto, que chegou à liderança daquela instituição com uma certa aura de defensor dos fracos e oprimidos, prova agora que vem mesmo ao que prometeu: defender o «declínio» masculino dessas velhacas das mulheres que estão a usurpar empregos, estatuto e direitos aos homens. Ora se a estes já nem é possível valerem-se daquilo em que inegavelmente são superiores – a força física –, então o que lhes resta?
É assim mesmo, doutor, pancada nelas!!! E caladinhas, senão ainda levam com um processo em cima por serem vingativas e terem mau carácter. Suas ordinárias, então atrevem-se a fazer queixa do marido só porque ele chega a casa e vos prega uma valente tareia?! Ele ama-vos. Rebentou-vos a boca e o nariz, mas é só porque está chateado. Partiu-vos duas costelas, mas foi por causa de problemas no trabalho… Aquele chefe! Deu-vos pontapés, atirou-vos contra as paredes da sala, encostou a ponta da faca à jugular e ameaça esvair-vos de sangue e de vida, mas é o álcool… ele quando bebe, coitado, descontrola-se… Depois até pede desculpa e chora e promete que nunca mais… E elas, estúpidas, também choram e acreditam, ano após ano. Até um dia.
A violência doméstica é considerada crime público desde o ano 2000. É, sem dúvida, um avanço civilizacional e significa que, após uma queixa, nem a vítima pode desistir do processo. O legislador optou por esta via para evitar o que vinha sucedendo: muitas mulheres iam à esquadra apresentar queixa, em momentos de desespero, mas acabavam por ceder à chantagem e ao terror imposto pelo agressor. Ora mesmo com esta lei, em 2008 já morreram 17 mulheres devido a violência doméstica, e em 2007 foram registadas cerca de 22 mil queixas pelo mesmo motivo. Ou seja, nem mesmo uma legislação mais apertada trava a escalada deste crime que, pelos vistos, não comove Marinho Pinto.
O bastonário da AO foi eleito no final do ano passado com o maior número de votos alguma vez alcançado pelos seus antecessores. A classe, cuja maioria de profissionais há muito deixou de ter uma profissão liberal para integrar o rol bem mais proletário dos trabalhadores por conta de outrem, votou em massa no homem que simbolizava o corte com o poder dos grandes escritórios. Não é, pois, de estranhar que vozes representativas desta aristocracia dominante reagissem com uma não disfarçada acrimónia a este intruso que prometia denunciar as injustiças. José Miguel Júdice considerou-o uma mistura de Mussolini e Hugo Chávez. Um exagero, obviamente. O que não retira a Marinho Pinto a qualidade de decepção do ano pelo que disse sobre a violência doméstica. Mas como estas coisas não têm de ficar impunes, as mulheres deviam boicotá-lo. Que nenhuma, em caso algum, recorra aos seus serviços quando ele regressar à advocacia. Talvez assim o insensível Marinho se emende.

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